sábado, 6 de abril de 2013

Joelma e Daniela: liberdade, libertinagem, tolerância e fé

Só faltou apedrejarem Joelma, cantora da banda Calypso. Ela declarou que é contra o casamento gay e que não queria ter um filho gay. Só faltou beatificarem Daniela Mercury. Assumiu seu casamento com uma mulher. Não há cantora mais popular no Brasil que Joelma, bonita e simpática, furacão dos palcos. Não temos cantora mais famosa e família que Daniela, bonita e simpática, embaixadora da ONU. Ambas são da festa, da alegria, fazem música pra pular. O que é que há?

Há o Brasil. Daniela é moça estudada. Baiana branquinha, sangue italiano, formação um-banquinho-e-um-violão. Teve um momento de explosão, no início dos 90. Diva do axé, última grande armação parida pela era das gravadoras. Depois se firmou como cantora de carreira, com arroubos experimentais ocasionais. Sem grandes sucessos, sempre celebridade, sempre boa de tevê e boa gente. Voltou a ser o que era antes de ser mega, uma cantora de MPB.

Joelma da Silva Mendes é de Almeirim, interior do Pará, ouviu falar? Ninguém ouviu. É o interior do interior. Joelma se fez e fez bem. Não canta tanto quanto Daniela, mas tem umas cinco vezes mais ataque. O Calypso é a maior máquina de festa do Brasil. Chimbinha é seu cérebro, Joelma sua cara, coxas e coração. Hoje Joelma toca planeta afora, ganha prêmios internacionais, rios de dinheiro, e circula onde quiser. Mas se o corpo roda mundo, sua cabeça continua em Almeirim. O que é mais que previsível e justificável: a maior parte do público continua vivendo em seu próprio Almeirim.

É provável que a maioria dos brasileiros assinasse embaixo da declaração de Joelma que escandalizou imprensa e formadores de opinião. Foi publicada no site da revista Época, no último sábado. Joelma disse o seguinte: “Tenho muitos fãs gays, mas a Bíblia diz que o casamento gay não é correto e sou contra [...] Já vi muitos se regenerarem. Conheço muitas mães que sofrem por terem filhos gays. É como um drogado tentando se recuperar”. Disse que se tivesse um filho homossexual, “lutaria até a morte para fazer sua conversão”.

A Bíblia diz, de fato e com todas as letras, que o casamento entre homens, ou mulheres, é errado. Esse novo papa, que todo mundo está achando tão simpático, tem obrigação de pregar que sexo entre iguais é pecado, e que o casamento gay é blasfêmia, porque é o que está escrito no livro. Se opôr a uniões homoafetivas não é privilégio de quem segue a Bíblia, aliás; vale também para judeus e muçulmanos. Não é que Joelma possui o direito de ter sua opinião sobre o assunto (e tem). É que essa não é a opinião dela. Ela não se dá o direito de ter uma opinião. Simplesmente é cristã e segue as regras do cristianismo à risca. Você pode perfeitamente achar que é besteira, mas não pode colocar a besteira unicamente nos ombros de Joelma.

Evidente que muitos cristãos, judeus e muçulmanos têm opiniões mais liberais. São os que não seguem as regras à risca. Na prática, não são religiosos, são agnósticos. Conheço uma crença que acredita vagamente em alguma espécie de divindade, mas também em várias outras coisas vagamente espirituais, um teco de budismo, um naco de espiritismo, ave-maria na hora da necessidade. Tudo bem - toda espécie de fé é igualmente exótica para mim. Uma vez ouvi a provação: "como você pode não acreditar em nada? Eu acredito em tudo!"

Assim é grande fatia da classe média alta brasileira, e acima. É o círculo que Daniela habita e o público que ela busca. Nessa turma, relacionamentos homossexuais são arroz e feijão. É gente que estudou, viajou, conviveu e convive com diferenças. Se temos preconceitos e birras, e temos, nos sentimos na obrigação de escondê-los e reprimi-los. 

Não é tarefa fácil para a minha geração e formação, mas com o exercício, vai automatizando. E de repente nos relacionamos tranquilamente com amigos e parentes gays e lésbicas e bissexuais. É bem mais fácil do que conviver com essa turma que "acredita em tudo"...

Um tema que passou meio batido na declaração de Joelma: mães que sofrem por ter filhos gays. Bem, é muito mais fácil ser gay com algum dinheiro, nos Jardins ou Barra, do que sem nenhum, em Paraisópolis ou na Favela da Maré. Gente que estudou e circulou convive melhor com o diferente e pune menos o que lhe é estranho. Mas esses são dez por cento dos brasileiros, com caridade. A maioria dos nossos conterrâneos é muito pobre e muito ignorante. Isso não faz de ninguém automaticamente intolerante, mas ajuda.

Joelma é povão. Sabe o que é ser um filho gay das classes trabalhadoras. Outro dia um motorista de táxi me contava de seu ano no inferno: perdi a mulher de câncer, fim sofrido. Pra piorar, minha filha mais velha, 22 anos, logo depois veio confessar que era lésbica. Botei pra fora de casa, não aceito filha sapatão! Devia ter desconfiado quando ela entrou para a Polícia Militar!

Argumentei: com o tempo vocês fazem as pazes, tem os irmãos mais novos também pra considerar. Ele retrucou bravo: para influenciar meus pequenos? Deus me livre, prefiro que eles nunca mais vejam a irmã. Bronco, o desgraçado, prefere perder a filha do que aceitar a moça. Me deu raiva e dó. Mas aí está, e o taxista não está sozinho de jeito nenhum.

Intolerância é um animal estranho. A nova mulher de Daniela é apresentável e simpática. Fosse um homem gordão, banguela e verruguento, talvez fosse maior o preconceito. Ou um sapatão pinta braba, modelo caminhoneira. Ou um travesti com silicone pra todo lado. Por quê? Porque mesmo o mais liberal entre nós tem preconceitos de montão. Inclusive preconceito de classe - como ficou bem explícito na reação fulminante contra Joelma. Ou na histeria contra Marco Feliciano. É o cara errado no lugar errado. Foi eleito pelo povo, e escolhido para dirigir a comissão de direitos humanos por acordo entre todos os grandes partidos, e com a benção do governo federal. Alguém bota Feliciano na conta de Dilma, do PT, PSDB, PMDB etc.? Alguém topa enfrentar o sistema de governo de coalisão que garantiu esses pequenos (mas importantes) avanços das últimas décadas? Não, vamos linchar o palhaço e deixar o circo em pé (leia mais aqui).

No futuro que chega, casamento continuará sendo a maioria entre homem e mulher. Imperativo biológico: procriar. As pessoas querem ter filhos, seus pedacinhos de imortalidade, como as amebas e as zebras. Mas relacionamentos - flerte, namoro, companhia - serão cada vez mais variados. É certo que haverá mais casais de homens, mais casais de mulheres. É provável que se tornem comuns relacionamentos afetivos contendo mais de duas pessoas. Seremos mais Danielas, mas as Joelmas continuarão entre nós. O mundo nunca será, nem deve ser, uma coisa só. O desafio mais recompensador é transformá-lo, o que começa por abraçá-lo. Aceitar diferenças é via de mão dupla.

Liberdade não é libertinagem, pregavam na minha infância. Contrário: liberdade é exatamente libertinagem. Porque a liberdade fundamental é a que ofende. A liberdade que me importa é a que você não suporta, e vice-versa. A liberdade de ser Daniela, e a liberdade de ser Joelma. Liberdade de falar, de acreditar, de fazer, transar, amar.

Essa liberdade, de crença, expressão, e relacionamento não existe de maneira absoluta em país algum. Aqui, dá seus passinhos, mas demanda cuidado e carinho. Requer formação e informação, respeito aos nossos contrários, leis laicas que valham para todos - e intolerância somente com os intolerantes nos atos, não nas palavras. É um ideal, um farol na noite, algo belo para acreditar. Todo mundo tem que ter fé em alguma coisa. Eu tenho fé que podemos ser livres, e seremos.



Fonte: André Forastieri no R7
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