quinta-feira, 23 de agosto de 2012

As esferas da nossa relação com Deus

Existem três esferas dentro das quais nossa relação com Deus acontece: a litúrgica, a doutrinária e a mística. Na litúrgica, celebramos através de cultos semanais a presença divina. A doutrinária é a esfera da razão, do estudo, da busca pela verdade traduzida em credos e confissões de fé; aquela que é ensinada e aprendida dentro das estruturas pedagógicas da igreja. Já a mística é a esfera da experiência. É um saber nascido de um contato íntimo com Deus, um conhecimento forjado nas entranhas de um encontro real e pessoal. Quando somos cheios da presença do Senhor, as paredes de nossa humanidade fazem de nós odres frágeis demais para suportar o enchimento do vinho divino. A presença de Deus produz em nós ao mesmo tempo um senso de plenitude e aniquilamento.

Arrisco dizer que enquanto uma pessoa não for além da esfera litúrgica e doutrinária, sua relação com Deus jamais se aprofundará. Não se trata de considerar o aspecto místico como categoria mais importante e superior que as outras. O caso aqui não é de importância, mas de profundidade. Um culto pode estar cheio de belas música e palavras inspiradas, mas ainda assim ser um espaço de intensa superficialidade. No âmbito da doutrina, não é raro encontrar pessoas interessadas em dissecar intelectualmente a fé, porém sem qualquer disposição no coração de realmente experimentá-la profundamente.

A experiência pessoal com Deus, que aqui chamamos mística, é por natureza profunda. Não há como ter uma experiência como essa de maneira superficial – até mesmo por ser ela algo pessoal, sem a dependência dos intermediários tão presentes nas outras esferas. Quando Deus irrompe com sua misteriosa presença em reposta a um coração realmente sedento dele, então pode-se adorar sem a necessidade de música; pode-se encontrar a verdade sem a intermediação de mestres, posto que, está-se experimentando um encontro mais direto, livre de distrações, espetáculos e embalagens – coisas, aliás, muitas vezes criadas por nós para encher o vazio da presença divina no coração dos participantes de um programa dominical. Sem essa experiência mística, a esfera litúrgica torna-se ou uma rotina enfadonha, sem qualquer vivência espiritual, ou um grande show eletrizante e bem produzido, mas morto em sua essência, já que nos bancos teremos meros espectadores.

Neste contexto, a esfera doutrinária torna-se um campo de batalha, um império do detalhe, na busca obsessiva por se provar que se é mais bíblico que o outro. É gente que crê certo, estuda certo e defende o certo, mas que quando fala exala arrogância por todos os poros. Ao invés de terem o rosto transfigurado como Jesus por causa do encontro com o Pai, ostentam uma expressão transtornada pela rigidez doutrinária que aceita poucos, exclui a muitos e julga a todos. Porém, quando a experiência de Deus se torna o centro da nossa vida, então a liturgia assume um outro significado: a verdade bíblica, confessional, doutrinária ganha contornos de vida e doçura. O culto é o desembocar comunitário de uma experiência pessoal; o estudo mediado pela razão se torna uma maravilhoso complemento do conhecimento nascido do coração. Fecha-se então o círculo virtuoso no qual o pessoal e o comunitário se integram juntamente com razão e sensibilidade. As esferas se interpenetram, fazendo de cada cristão uma transparência viva pela qual a Imago Dei vai sendo revelada ao mundo.

A maior necessidade das nossas igrejas hoje não é de mais informações, métodos, planos, estratégias, gestores, artistas e organização. O que precisamos é de pessoas tocadas e tocando a presença viva de Deus. Sim, Karl Rahner, teólogo alemão, estava com razão quando disse profeticamente que “o cristão do futuro será um místico, alguém que experimentou alguma coisa, ou não será nada”. Levada às últimas consequências, essa afirmação nos fará concluir que uma das principais, senão a principal, marca de um cristão em nosso tempo está em quanto ele experimenta e não o quanto sabe ou canta sobre Deus. É na esfera mística que saímos da condição de meros participantes de um programa religioso e iniciamos uma jornada espiritual rumo ao coração do Pai.

A psicologia ensina que a infância não é um tempo passado, antes é uma presença constante na nossa vida. Embora adultos, a criança que um dia fomos vive em nós. Isto não somente é verdade no universo psíquico, mas é fato também no âmbito espiritual. Ainda vejo dentro de mim o menino espiritual que um dia fui, a me chamar da minha pretensa maturidade para retornar a simplicidade poderosa da esfera mística, onde o Senhor deixa de ser uma letra melódica ou uma ideia teológica e se transforma numa presença viva – uma presença tão transformadora que queima sem contudo aniquilar quem dela experimenta. Uma glória tão fulgurante que, talvez, somente as crianças espirituais livres de pesos eclesiásticos e teológicos estejam aptas a vivenciar.

Quanto a mim, à medida que avanço na minha caminhada rumo a Deus, mais vou sentindo a necessidade de retornar para esfera onde tudo começou...



Fonte: Cristianismo Hoje
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