quarta-feira, 29 de junho de 2011

O casamento que mata aos poucos

Não consigo tirar da cabeça um estudo de psicologia divulgado há alguns dias nos Estados Unidos. Ele demonstra como um casamento infeliz é capaz de destruir a saúde do coração. A imprensa deu pouca atenção ao trabalho apresentado na reunião anual da Sociedade Americana de Psicossomática. Para mim, ele suscita uma discussão da maior importância. A minha escolha é mais um exemplo de que os jornalistas não são poços de imparcialidade. Como qualquer pessoa, somos esponjas do mundo. Captamos a realidade e somos tocados por ela a partir de referências e experiências muitos pessoais.

Talvez por isso eu tenha ficado tão interessada na pesquisa realizada pela psicóloga Nancy Henry, da Universidade de Utah. Ela recrutou 276 casais com idades entre 40 e 70 anos. Eram uniões duradouras – de 20 anos, em média. Nancy investigou a qualidade desses casamentos a partir de parâmetros como suporte mútuo, envolvimento emocional e frequência de desentendimentos sobre sexo, filhos e dinheiro. Os participantes também passaram por avaliações médicas como exames de sangue, medidas da pressão arterial e da circunferência da cintura.

Nancy descobriu que uniões desgastadas podem provocar depressão tanto nas mulheres quanto nos homens. Mas as mulheres que vivem casamentos infelizes parecem estar mais sujeitas a desenvolver sintomas fisiológicos da chamada síndrome metabólica. Ela é caracterizada por sinais como acúmulo de gordura abdominal, hipertensão, excesso de açúcar no sangue, baixos níveis de colesterol bom (o HDL, que ajuda a limpar as artérias) e excesso de triglicérides. Quem tem pelo menos três dessas cinco características tem a tal síndrome metabólica. Ela aumenta o risco de infarto, AVC e diabetes.

Por que as mulheres sofrem mais? "As mulheres parecem basear o conceito que elas têm de si mesmas na qualidade das relações que elas vivem. Talvez por isso um casamento ruim tenha um impacto tão grande na saúde física e emocional das mulheres", diz Nancy.

Perguntei a dois cardiologistas brasileiros se as conclusões do estudo são plausíveis. O médico Raul D. Santos, diretor da unidade clínica de lípides do Instituto do Coração, em São Paulo, diz que sim. Ele explica que vários estudos epidemiológicos associam a depressão e a raiva com a síndrome metabólica. A maneira mais simplista de explicar a relação seria que a pessoa deprimida ou com forte stress psicológico abandona medidas saudáveis de estilo de vida. Fuma mais, não vê razão para fazer atividade física e come mal.

Existem também mecanismos metabólicos envolvidos nisso. O stress aumenta as descargas do hormônio cortisol. Essa substância contribui para o acúmulo de gordura abdominal, aumento da pressão arterial e da resistência à insulina (o que desencadeia o diabetes). Há dúvidas na literatura médica sobre se as mulheres realmente sofrem mais danos. "Alguns estudos sugerem que as mulheres sejam mais sensíveis aos efeitos deletérios da depressão. Outros apontam a mesma coisa nos homens", diz Santos. "Depressão não é legal para ninguém e é um dos gatilhos do infarto", afirma.

O cardiologista Marcelo Assad, do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio, tem a mesma opinião. "A depressão é indiscutivelmente a doença do século. A manutenção de um relacionamento falido perpetua um ciclo de stress, diminuição da autoestima e falta de perspectivas", afirma Assad.

Conheço bem de perto um casal que vive esse ciclo há quase 50 anos. Começou a se desentender na lua-de-mel e nunca mais encontrou o eixo do respeito mútuo. Vai completar bodas de ouro (ou será de sangue?). Esse homem e essa mulher nunca tiveram coragem de reconstruir a vida – cada um a seu modo. O sofrimento não é só deles. A decisão de perpetuar um casamento desgastado e desgastante teve uma grande repercussão na formação da personalidade das filhas. As eternas brigas continuam fazendo vítimas. Hoje elas reduzem as possibilidades de convívio familiar oferecidas aos netos.

Sempre que os visito lamento tanta imobilidade. Eles se acostumaram a viver mal. Não há quem os faça enxergar que enquanto houver vida há espaço para transformação. A saúde de ambos anda mal. O homem, contido e calado, já sofreu um "quase" infarto. As artérias obstruídas puderam ser alargadas com stents. A mulher, explosiva e rancorosa, tem açúcar demais no sangue, colesterol alto e gordura abdominal. Os médicos tentam baixar os índices com remédios, mas a "questão de fundo" está além do alcance deles.

A infelicidade deveria ser tão combatida quanto o colesterol. Mas essa decisão só pode partir de quem sofre. Naquela relação não sei qual dos dois sofre mais. Nem qual dos dois é mais culpado. Amo os dois da mesma forma.

Acho que um dia vou receber um telefonema de um dos meus pais dizendo que o outro morreu de repente. De infarto. De AVC. Uma morte rápida, instantânea, mas tramada ao longo de décadas de uma infeliz vida a dois. Essa é a minha sensação. Mas quem sou eu para prever quem vai morrer antes de quem? Talvez um dia eles estejam vivos para receber um telefonema desse tipo. E a ligação pode partir da minha casa.


Fonte: Cristiane Segatto, na Revista Época
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