sexta-feira, 23 de abril de 2010

Neopentecostais na visão de um ateu

Ricardo Mariano é sociólogo que se diz ateu e escreveu uma tese de Mestrado no Departamento de Sociologia da USP em 1995. Reelaborou sua dissertação, enriquecendo-a com novos dados e publicou-a com o título Neopentecostais - Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil (Edições Loyola, São Paulo 1999, 160 x 230 mm, 246 pp).

O trabalho versa sobre as comunidades eclesiais neopentecostais protestantes e tenciona mostrar como evoluiu o pentecostalismo fundado no começo do século XX nos Estados Unidos; assume três notas características: a "guerra santa" contra o diabo tido como causador de todas as desgraças que acometem o ser humano; a Teologia da Prosperidade, que promete bem-estar material a quem pague dízimo (que pode ir até 30% do salário ou dos rendimentos) e faça vultosas ofertas à Igreja; a liberalização dos costumes, que torna os crentes mais abertos para o mundo de hoje, especialmente para a atividade política.

O livro é farto em documentação, colhida em entrevistas, participação nos cultos, leituras de jornais e revistas... em modo que desvenda aspectos muito expressivos da realidade neopentecostais, aptos a explicar o extraordinário avanço dessas comunidades no Brasil e na América Latina em geral. Nas páginas subsequentes será exposto quanto Ricardo Mariano propõe a respeito da "guerra santa" contra o diabo. A dissertação do autor é objetiva e isenta de preconceitos, quanto Ricardo Mariano professa o ateísmo e não quer ser senão frio sociólogo. Dois reinos antagônicos Para Ricardo Mariano, o neopentecostalismo começa na Segunda metade dos anos 70, cresce e se fortalece no decorrer das décadas de 80 e 90. Compreende: a Igreja Universal do Reino de Deus (a mais significativa, fundada no Rio em 1977), a Internacional da Graça de Deus (Rio 1980), a Comunidade Cristo Vive (Rio 1986), a Comunidade Sara Nossa Terra (Goiás 1976), a Comunidade da Graça (São Paulo 1979), a Comunidade Renascer em Cristo (São Paulo 1986) e a Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (São Paulo 1994). Os neopentecostais acreditam que o universo está dividido em dois reinos: o espiritual e o material.

O reino espiritual é habitado por seres espirituais: Deus, o Diabo, anjos e demônios, em luta constante entre si.

O reino material é o nosso mundo, habitado pelos homens e pelas demais criaturas; é o campo de batalha da guerra espiritual. O que ocorre no mundo material, deriva da guerra travada entre as forças de Deus e as do Diabo no mundo espiritual. Dessa guerra os homens, conscientes ou não, participam. Os fiéis colocam-se do lado de Deus e julgam ter poder e autoridade, a eles concedidos por Deus, para, em nome de Cristo, sobrepujar as obras do Maligno. O Diabo e seus seguidores agem neste mundo de maneira muito diversa: o espiritismo e os cultos afro-brasileiros são por eles manipulados para levar os seres humanos à perdição; a Igreja católica também parece infestada de demônios, segundo os neopentecostais; que lhe movem ferrenha campanha. Além disto, conforme Edir Macedo, os demônios se apoderam das pessoas utilizando variados artifícios: assim levam-nas a participar de centros espíritas, de trabalhos e despachos, comidas sacrificadas aos ídolos. Os possessos do demônio apresentam sintomas, que, segundo Macedo, são os dez seguintes: nervosismo, dores de cabeça constantes, insônia, medo, desmaios ou ataques, desejo de suicídio, doenças cujas causas os médicos não descobrem, visões de vultos ou audição de vozes, vícios e depressão. Dada a trivialidade de alguns desses sintomas, qualquer ser humano pode-se considerar um possesso virtual, quando não um possesso de fato e em tempo integral.

Em suma, os demônios são responsáveis diretos por uma infinidade de males, infortúnios e sofrimentos. Visto que os neopentecostais identificam esses malfeitores com as entidades dos cultos afro-brasileiros, travam combate cerrado contra a macumba com seus exus, orixás, guias, pretos-velhos, ...

Observa Ricardo Mariano que, ao combater a umbanda, o candomblé e o espiritismo, os neopentecostais estão assumindo as crenças dos seus adversários; com efeito, estão acreditando na eficácias dos trabalhos e despachos; acatam o panteão afro-brasileiro; falam com as entidades e as conjuram a que deixem de importunar seus "cavalos" ou suas vítimas. Quando combatidos, nos cultos da Igreja Universal, os demônios são identificados pelos respectivos nomes, como os denominam os próprios pais e mães-de-santo; os diferentes tipos de sofrimento e infortúnio dos crentes são atribuídos estereotipadamente à ação de tal ou tal entidade demoníaca. – Eis como se relata Ricardo Mariano em trecho muito significativo, que vai, a seguir, transcrito:

Como se dá a "guerra santa"

"Como exemplo, relato a oração para a prosperidade financeira feita no templo de Santa Cecília, sede regional da Universal, em 19.8.90: com uma suave música de fundo, os fiéis, em pé, de olhos fechados, alguns contritos, outros gesticulando os braços ardorosamente, falam com Deus, seguindo as ordens do pastor. Enquanto isso, os obreiros caminham pela igreja perscrutando nos semblantes do fiéis possíveis sinais de possessão ou a presença de demônios escondidos. E o pastor ora: ‘Que o Senhor venha atender aos nossos pedidos. Venha-nos dar prosperidade, saúde... (agora em tom colérico, tal como o fiel da Universal deve tratar os demônios e se dirigir a eles). Eu quero que os espíritos malditos, os demônios que estão na vida destas pessoas colocando a miséria, os problemas, o desemprego, saiam! Podem se manifestar, vamos! Manifesta o Tranca-Rua! Você que está trancando os aumentos salariais da pessoas! Você que está tirando a felicidade das pessoas! Você que está no estômago, nas pernas, na cabeça, na vida financeira, vá saindo! Os Exus-Caveira, o Oxalufã, a Pomba-Gira, sai, sai! Você que está colocando o vírus da AIDS, a gastrite, a infelicidade, pode-se manifestar agora! O Lúcifer, a Maria-Bonita, a Pomba-Gira Sete Gargalhadas do Bordel, podem manifestar-se agora! O Exu-Veludo Veludinho, o Preto-Velho, a Maria-Conga vão-se manifestando! Vocês vão ser queimados, queimados, queimados! Vamos, começa a manifestar-se agora, vamos. Você que coloca caroço no seio, coloca câncer, sai agora! Vai sendo queimado agora, em nome de Jesus! Vai queimando, Jesus, todo mal, toda doença, toda enfermidade. Você que está no esposo, na esposa, nos pais, nos filhos, nos primos, vai queimando! Você que trabalha nas encruzilhadas, nas praias, no roncó, vai manifestando agora, sais, saia’. Em seguida, pede a todos que digam: ‘Senhor Jesus, eu quero que as minhas mãos sejam abençoadas agora para eu ser abençoado e queimar todos os problemas’. Benzidas as mãos, ordena aos fiéis que segurem ou coloquem as mãos em objetos que simbolizem a prosperidade financeira, como carteira, bolso, talão de cheques; orem com fé e peçam o aumento salarial, o bem material desejado. Por fim, acompanham o pastor, amaldiçoando e expulsando toda miséria e todo mal. Esbravejam ‘Sai, sai’ (pp. 128s).

Observa Ricardo Mariano:

"Embora as possessões demoníacas não constituam novidade nos meios cristãos e pentecostais, com o surgimento dos neopentecostais, essas manifestações, dadas sua freqüência e relevância, adquiram nova dimensão.

Em matéria de manifestação extática, já não se pode mais dizer que a marca distintiva de certos segmentos neopentecostais seja a glossolalia, mas sim o transe de possessão. De tão enfatizada que é, a possessão demoníaca tornou-se indissociável da imagem e da identidade das Igrejas Universal e Internacional da Graça. De tanto invocar demônios para se manifestarem nos cultos, conseguiram transformar, ritual e doutrinariamente, o transe de possessão em sua marca. Daí que, em sua origem, ‘a Universal era considerada casa de macumba’, conforme o pastor Silvério Prazeres Costa, líder da igreja em Portugal’ (pp. 129s).

Não por mera coincidência a Sexta-feira é dia de libertação ou de exorcismo. Com efeito; Sexta-feira é o dia em que a Umbanda pratica seus ritos de expulsão das entidades malignas:

"A Sexta-feira é conhecida na Umbanda como o dia das giras de Exu, que se dão geralmente à noite. A meia-noite, "hora grande" de Sexta para Sábado é o momento em que os Exus se manifestam e trabalham. É justamente nesta mesma hora que nas igrejas estão sendo realizadas as cerimônias onde esses Exus são invocados para, em seguida, serem expulsos, dos corpos das pessoas presentes" (p. 130).

Continua Ricardo Mariano a sua descrição longa e minuciosa, que merece atenção:

"Na prática, o ritual de libertação de possessos ocorre em quase todos os cultos da Universal. A libertação se dá durante a oração para que os fiéis recebam graças e se libertem dos males. Enquanto os fiéis, de olhos fechados e em pé, oram repetindo a oração proferida pelo pastor, os obreiros caminham pelo templo, orando e olhando fixamente para cada um dos presentes, em busca de demônios escondidos. Diante de qualquer indício, como um pequeno tremor do corpo, lágrimas, desconforto físico, mal-estar, o obreiro avança sobre o fiel, segura sua nuca, impõe uma das mãos sobre sua cabeça, muitas vezes girando-a freneticamente para os lados e para trás, tirando-lhe o equilíbrio, o que, ao lado da privação do sentido da visão, contribui para a possessão (trata-se de uma pretensa possessão ou uma imaginada possessão), e esbraveja ao pé de seu ouvido para que o demônio se manifeste. Boa parte dos virtuais possessos não se rende a esse apelo. Os que entram em transe podem ser libertos tanto em seus lugares de assento quanto depois de levados e exibidos à frente da congregação. Os casos de possessão mais renitentes, cuja libertação exige mais tempo e maior esforço físico dos obreiros na "luta corporal" com os possessos, ora são encaminhados ao púlpito, ora para aposentos privados do tempo. Esta saída é menos satisfatória; ocorre quando os incessantes gritos histéricos do ‘possesso’ e a tenaz resistência do ‘demônio’ em desmontar de seu ‘cavalo’ atrapalham o culto e colocam momentaneamente em xeque a eficácia do ritual exorcista.

Quando o possesso é levado ao púlpito, já com o demônio submetido à autoridade divina e amarrado para que não machuque nem prejudique mais seu ‘cavalo’, a estrutura do ritual exorcista que se estabelece com os deuses e espíritos inimigos geralmente apresenta enredo fixo. Primeiro, o pastor entrevista o demônio para identificar seu ‘nome’, invariavelmente uma entidade dos cultos afro-brasileiros. Segundo, pergunta como ele se apossou daquela pessoa. Terceiro, procura descobrir os males e sofrimentos que ele está provocando na vida (familiar, financeira...) da vítima. No quarto e derradeiro passo, o ritual perde o caráter de talk show com o demônio.

Depois de humilhá-lo, o pastor expulsa-o em nome e para a glória de Cristo. Mário Justino relata que ele e outros pastores da Universal, para provar seu poder sobre os demônios, faziam que as ‘pessoas [em transe] andassem de joelhos ao redor da igreja, ou batessem a cabeça nos nossos pés, ou latissem ou ainda que imitassem galinhas, porcos e outros animais’. Quando o suposto demônio reluta em sair, o pastor pede a ajuda da platéia, que bate firme o pé no chão, ergue as mãos em direção ao possesso e brada ‘Sai, sai, queima, queima!’. Para exemplificar como se processa tal diálogo sincrético, descrevo ritual exorcista da Igreja Universal.

Os fiéis cantam: ‘Tranca-Rua e Pomba-Gira fizeram combinação / combinaram acabar com a vida do cristão / torce, retorce, você não pode, não / eu tenho Jesus Cristo dentro do meu coração’. E mais este corinho: ‘O nome de Jesus é poderoso / não há quem possa derrotar / o demônio sai, a doença sai / quando o nome de Jesus vem operar’. Depois da oração, da manifestação e libertação de demônios, o pastor indaga quem se está sentindo melhor. A maioria dos presentes levanta a mão em sinal afirmativo. Nisso, uma mulher há pouco liberta novamente fica possessa, do modo característico, isto é, com os olhos fechados, corpo retorcido, emitindo ora grunhidos guturais, ora gritos histéricos, os braços voltados para trás e as mãos em forma de garra. Logo o demônio é amarrado e a possessa levada ao púlpito. O pastor pergunta, gritando, qual é o nome do demônio que a está possuindo. Vencida a resistência inicial, recebe a resposta, com a voz cavernosa de sempre: ‘Exu Capa-Preta’. Insolente, o Exu diz odiá-lo. O pastor, então, escarnece dele, dizendo estar tremendo de medo. Todos riem. O pastor indaga o que Exu está fazendo na vida da possessa. ‘Estou matando-a aos pouquinhos’, responde ele. Segurando-a pelos cabelos, o pastor pergunta com qual doença ele a afligiu, descobre que são várias as doenças que a acometem. Interroga também o marido da possessa, presente ao culto. Este menciona várias enfermidades, a elevada quantia gasta com remédios e hospitais, cita nomes de exames laboratoriais solicitados e de médicos famosos consultados e lamenta, apesar dos gastos e esforços, os pífios resultados obtidos até então. Do alto de sua experiência com o fenômeno, o pastor diagnostica que o problema é de natureza espiritual. Em seguida, começa por retirar Lúcifer, rei dos demônios. Diante da resistência deste, persiste, agora com o auxílio dos fiéis que batem os pés no chão enquanto bradam ‘Queima, queima!’, até o pastor amarra Lúcifer, deixá-lo de joelhos e obrigá-lo a admitir, oralmente e por mais de uma vez, estar derrotado por Jesus. Depois de humilhá-lo, ordena a ele que retire todo o mal posto no fiel e desfaça os pontos. Pode para Jesus queimar o Lúcifer, o Capa-Preta, toda a legião de demônios e as enfermidades. ‘Queima agora!’, esbraveja. Após a expulsão do Exu Capa-Preta, o pastor diz que ela está curada com mais esta pujante vitória de Jesus, todos cantam entusiasmados. Aproveitando o clima de regozijo, o pastor pergunta quem trouxe o envelope com as ofertas..." (pp. 130-132).

Eis outro relato interessante:

"Em programa de rádio, depois de afirmar que no culto dominical ouvira um ‘coro de anjos’ e após limitar a voz de um deles, a bispa Sônia Hernandes travou o seguinte diálogo – que demonstra como as crenças pentecostais, longe de destruírem, por seu exclusivismo e caráter transnacional, as crenças preexistentes e o imaginário religioso popular, podem reinterpretá-los e incorporá-los – com o vice-presidente da Renascer, na época, pastor Osvaldo Bertoni.

Sônia – Você já soube de algum caso de gente ser transformada em bicho?

Bertoni – Você está falando de lobisomem?

Sônia – É, esses negócios de mulas-sem-cabeça por ai.

Bertoni – Eu já soube. Eu atendi a uma vida que presenciou isso com o pai dela (...) É verdade. O homem era envolvido com feitiçaria. Praticava as feitiçarias de São Cipriano, que é um livro maldito (...) Ela tinha 7 anos de idade, quando um dia veio uma pessoa para matar o seu pai. A mãe já havia falado a ela: ‘Tome cuidado com o seu pai, porque ele se transforma em moita, cerca, árvore, arbusto!’ E naquele dia ela viu seu pai sair correndo quando soube que a pessoa vinha matá-lo. Correu para o curral de vacas. Ela correu atrás. Mas, naquele momento, ele se transformou numa vaca e entrou no meio do rebanho.

Sônia – Ah não!

Bertoni – Verdade. Esta vida ficou detonada. Agora ela tem quarenta e poucos anos (...) Ela viu o pai virar uma vaca. E aquele homem, aquela vaca, não sei como é que eu chamo, ficou lá no meio até o fim da tarde, porque o homem que queria matá-lo não ia embora. Quando o homem desistiu, aí, ela ali vendo, o pai dela voltou do meio de uma vaca. Isso causou trauma, desgraça, um problema tão grande (...) Essa vida teve todos os problemas possíveis. Quando nós a atendemos, ela já havia encontrado o Senhor havia algum tempo, mas sua vida estava amarrada (...) A contaminação foi tão grande, o pai tinha feito oferecimento para estes demônios todos (...) O processo de libertação dela durou umas quatro horas (...) Ao passar pela libertação, Deus começou a realizar coisas grandiosas através dela (...) Aconteceram curas interiores nela. Jesus tratou e restaurou aquela vida (Rádio Imprensa Gospel FM, 3.12.92)" (pp. 142s).

Não é necessário comentar dizeres que, por si mesmos, atestam lamentável grau de cego fanatismo.

Passemos a outro aspecto da questão.

Reflexos na política

Às pp. 144s do livro em foco lê-se:

"Prato cheio para os políticos evangélicos, a crença nos espíritos territoriais tem-se prestado ao uso eleitoreiro. Justificam seus defensores, candidatos a cabos eleitorais, que a eleição de evangélicos para os altos postos políticos da nação trará bênçãos sem fim à sociedade. Além de desalojar parlamentares infiéis, idólatras, macumbeiros e adeptos de práticas pagãs, parcialmente culpados pelas terríveis maldições que recaem sobre o pais. Segundo Neuza Itioka, para que "os demônios podem entrar através dos olhos" de quem assiste aos programas de TV, a "crise brasileira tem fundo espiritual". Culpa da colonização católica, mas também de gente de destaque no cenário político e empresarial do pais, como Antônio Carlos Magalhães, Roberto marinho e Fernando Collor, que, segundo ela, "teriam feito pacto com o diabo por 50 anos" ( Nvoice, 31, 1996), os políticos evangélicos, eleitos, teriam a privilegiada oportunidade de poder interceder, nos planos material e espiritual, diretamente no próprio local onde se alojam poderosos demônios territoriais que tanto oprimem os brasileiros.

Diante de três centenas de pastores reunidos no Hotel Caesar Park, São Paulo, dia 20 de agosto de 1994, Sônia Hernandes, com frases do tipo ‘A Palavra de Deus nos fala que, quando um servo de Deus assume o comando, todo o povo é abençoado’, conclamou os presentes a apoiar a candidatura de Quércia à Presidência da República, mesmo que tivesses objeções quanto a sua idoneidade e competência, porque sua vice, Íris Resende, era evangélica de primeira hora. A estratégia de Quércia surtiu efeito, visto que teve seu melhor desempenho eleitoral, de 8,3%, entre os evangélicos, enquanto na população alcançou apenas 5,1% (Pierucci & Prandi, 1996: 227, Tabela 5).

Em campanha para eleger-se para o Congresso Nacional em 1994, o pastor Lamartine Posella fez declaração que tipifica o pensamento político-religioso dos neopentecostais: ‘Penso que o caos social, político e econômico é decorrência, numa primeira instância, das maldições espirituais que repousam sobre nosso país (a idolatria, o espiritismo, o completo repúdio a Deus, enfim, por parte de milhões de brasileiros). Tais maldições espirituais repercutem diretamente no mundo tangível e se expressam em morte, miséria, fome, prostituição, esfacelamento moral das famílias e das instituições políticas e econômicas. A transformação do Brasil, assim, há de começar necessariamente pela restauração espiritual da nação, passando pela santificação da igreja e de cada crente’ (integração Cristã, nº 13, 1996)".

Na defesa da candidatura de Francisco Rossi (PDT/SP) ao governo de do Estado de São Paulo, em 1994, a pastora Valnice Milhomens, líder do Ministério da Palavra de Fé, alinhavou seus argumentos no campo da guerra espiritual. ‘É inevitável concluir que a raiz dos nossos problemas é de ordem espiritual. Satanás tem conquistado direitos legais de nos oprimir, como nação, por causa das transgressões à Constituição do Reino de Deus (...) O reino terreno é diretamente controlado pelo reino espiritual. Deus deu a Terra aos filhos dos homens, e as forças espirituais buscam influenciá-los. O homem não tem poder em si mesmo, pelo que ou ele se sujeita a Deus, ou a Satanás (...) Diante do exposto, é de suprema importância elegermos governantes que reconheçam a Deus como Supremo e de fato dependam d’Ele e consultem a sua Palavra (...) Estamos não apenas apoiando a candidatura do Dr. Francisco Rossi, mas empenhando-nos em batalha espiritual, intercessão e apoio, para que este servo de Deus chegue ao governo do Estado e o nome do Altíssimo seja glorificado’ (Gospel News, 5, outubro de 1994: 10)".

Sintoma da guerra espiritual, a expressão imperativa ‘Tá amarrado’, dirigida ao Diabo para bloquear ou impedir sua ação, tornou-se corriqueira nos cultos neopentecostais. Diante de qualquer embaraço, constrangimento ou dificuldades, pastores e fiéis soltam logo um ‘Tá amarrado’, geralmente com seu complemento ‘em nome de Jesus’, que funciona como verdadeiro amuleto verbal. Imbuídos de poder talismânico ou tetor, existem até adesivos com a expressão ‘Tá amarrado em nome de Jesus’ acompanhada da gravura de uma corda em forma de nós. Eliade (1991: 88-122) nos mostra que a existência de deuses amarradores e de simbologia dos nós é muito antiga. Está presente nas religiões e mitologias indo-européias, na Índia antiga, no Irã, etc. Segundo ele, os nós e as amarras benéficas funcionam como "meios de defesa contra animais selvagens, contra as doenças e os feitiços, contra os demônios e a morte". Eliade já nos advertiu: ‘Em todos os lugares do mundo, os nós são usados como amuletos’. Tais adesivos com dizeres de amarras e gravuras de nós lembram as flâmulas do Salmo 91 e o ato de deixar a Bíblia aberta neste capítulo em algum cômodo ou móvel da casa, prática tradicional nos meios pentecostais, para evitar incidentes e opressão satânica" (pp. 144s).

Eis agora outra pretensa modalidade de defesa dos crentes contra os ataques do Maligno:

Objetos "bentos"

"A Igreja Universal e a Internacional da Graça distribuem os fiéis objetos ungidos dotados de poderes mágicos ou miraculosos, ato que as aproxima de crenças e práticas dos cultos afro-brasileiros. Depois de ungidos, os objetos são apresentados aos fiéis como imbuídos de poder para resolver problemas específicos, em rituais diversificados, tendo por referência qualquer passagem ou personagem bíblicos. Dotados de funções e qualidades terapêuticas, servem para curar doenças, libertar de vícios, fazer prosperar, resolver problemas de emprego, efetivos e emocionais. Aos domingos, a Universal faz a corrente do amor para resolver problemas afetivos e conjugais. A Folha Universal de 29.01.1995 relatou que um templo da igreja, em Ribeirão Preto, aos domingos, realizava a corrente "Noite do meu bem". Não encerram caráter meramente simbólico, como alegam os pastores quando inquiridos pela imprensa e por outros interlocutores. Para os fiéis, cujos parcos recursos são desembolsados em troca de bênçãos nas correntes de oração das quais participam dias ou semanas ininterruptas, tais objetos, pelos quais esperam ter seus pedidos atendidos, contêm uma centelha do poder divino.

Embora os meios pentecostais tradicionalmente se oponham ao uso de objetos sagrados (exceto a Bíblia) dotados de poder mágico e terapêutico, para não sucumbirem à idolatria, a Universal e a Internacional, mediante pagamento de ofertas estipuladas, distribuem aos fiéis rosas, azeite do amor, perfume do amor, pó do amor, saquinho de sal, arruda, sal grosso, aliança, lenço, frasquinhos de água do Rio Jordão e de óleo do Monte das Oliveiras, nota abençoada (fotocópia de cédula benzida), areia da praia do Mar da Galiléia, água fluidificada, cruz, chave, pente, sabonete. Tal como na umbanda, recomenda-se que eles sejam ora colocados na comida, ora jogados num rio, ora passados no corpo, ora guardados na carteira, carregados no bolso e daí por diante.

Basta um único programa de TV da Internacional da Graça de meados dos anos 80, transcrito por Hugo Assman (1986: 100-193), para revelar várias práticas mágicas, similares às da umbanda e de benzedeiras.

Citarei três delas. Pastor Gilberto convida os telespectadores a buscar a peça de roupa daquela pessoa que está internada, que está com Exus em cima, está com Tranca-Rua, com Omolu, alguém que colocou seu nome lá no cemitério na cabeça de defunto fresco’. Fala ainda da cura da fiel que iria amputar a perna: ‘Olha, a Sra. Vai pegar três petalazinhas dessa rosa, fazer um chá, um banho e vai durante sete dias de manhã banhar a perna em nome de Jesus com toda a fé. E ela fez isso e não precisou mais cortar a perna’. Em resposta a um pedido de oração para cura de epilepsia, R. R. Soares revelou: ‘Eu fui responder à carta (...) me deu uma voz que disse: manda ele colocar essa carta sete dias debaixo do travesseiro. Assim eu pus na carta (...) Um tempo depois chegou a resposta (...) Colocamos a carta debaixo do travesseiro da esposa. Aos sete dias saímos pro culto, o demônio deu uma manifestação como nunca. Foi embora e minha esposa curou’ " (pp. 133s).

Por último, seja feito o seguinte registro:

Perturbada a ordem pública

Ricardo Mariano colecionou várias notícias da imprensa que relatam incidentes públicos provocados pela "guerra santa":

"Há poucos dias, uma mulher usando um turbante próprio dos umbandistas foi expulsa por evangélicos do ônibus em que viajava, na zona norte do Rio" (Veja, 30.11.1988).

"(...) moradores da travessa Santa Martinha, na Abolição, denunciaram ontem os freqüentes ataques praticados contra o Centro Espírita Irmãos Frei da Luz, vizinho ao templo. Ontem, ainda traumatizados e apavorados com a violência do dia anterior – quando cerca de 500 freqüentadores da Igreja Universal fecharam a rua e agrediram a pedradas os umbandistas -, os moradores pediram providências às autoridades para que sejam evitados novos conflitos" (O Globo, 7.7.1989).

"O procurador-geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, encaminhou despacho à seção da Procuradoria do Rio de Janeiro, pedindo abertura de inquérito contra a Igreja Universal do Reino de Deus, por calúnia e difamação aos cultos afro-brasileiros. Foram citados no despacho os pastores evangélicos Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, do Rio, e Gilmar Teixeira Rosas, da Universal do Reino de Deus, de Salvador. Entre as agressões, constam violência física contra membros das religiões afro, tentativas de invasão de terreiros, livros anunciando ligações do candomblé com o diabo e programas radiotelefônicos afro que são vilipendiados" (Aconteceu, 523, 7-13-1989).

"Em agosto de 1990 um pastor da Universal, no templo de Santa Cecília (SP), disse que a estátua de Iemanjá na Praia Grande, litoral sul de São Paulo, estava sem uma das mãos. Em seguida, rindo, afirmou que isto foi o resultado de uma paulada só".

"O pai-de-santo Nelson de Omulu (disposto a reagir) relata agressões cometidas por membros da Universal contra os cultos afro: ‘Primeiro, eles só atacavam nas rádios. Depois começaram a invadir terreiros. Agora, eles resolveram bagunçar nossas festas. Aconteceu isso na festa do final do ano passado, quando o Bispo Macedo e seus seguidores (cerca de 15 mil) invadiram a Praia do Leme, com aqueles alto-falantes, para destruir nossas homenagens a Iemanjá. Na festa da criança, que a gente realizou na Quinta da Boa Vista, os evangélicos quebraram várias imagens e queimaram até roupas de santo’ (O Globo, 23.10.1988)".

"(...) o auxiliar de marceneiro José Targino, de 30 anos, adepto da seita do ‘bispo’ Macedo, matou, com um golpe de marreta, o biscateiro Josimar Vaz dos Santos, de 40 anos, umbandista (...) na Rocinha. Segundo a polícia, há algum tempo José Targino, como membro da Igreja Universal, vinha tentando fazer com que Josimar abandonasse a Umbanda e entrasse para a seita. A insistência de Targino e as recusas de Josimar acabaram por gerar uma inimizade entre os dois; após uma discussão mais séria, José Targino aproveitou-se de que Josimar estava dormindo sozinho em seu barraco, anteontem à tarde, e arrombou a porta, matando-o com uma marretada na cabeça (Veja, 25.4.1990)".

A Igreja Universal... nos cultos, nas rádios e na Folha Universal ataca o Papa (até xingando-o de ‘papa do diabo’), como fez o então pastor Carlos Rodrigues, o Vaticano, a CNBB, o culto a Maria (mariolatria), a idolatria, acusa padres e bispos de homossexualismo e pedofilia. Até o episódio do "chute", porém, nenhum embate mais grave ocorrera entre elas, apenas escaramuças, nos moldes das citadas abaixo.

O arcebispo de São Luís, Dom Paulo Pontes, pediu à Secretaria de Segurança Pública garantias contra os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, que provocaram tumultos durante a procissão do Senhor Morto, na Sexta-feira da Paixão, e ameaçaram repetir os atos de protestos na procissão de Corpus Christi, em 25 de maio (O Estado de S. Paulo, 29.3.1989)".

O ambiente de Juazeiro do Norte é tenso em consequência da troca de acusações entre os devotos do Padre Cícero e os pastores e seguidores da Igreja Universal do Reino de Deus (O Estado de S. Paulo, 18.8.1989)" (pp.123s).

Pergunta-se agora:

Que dizer?

Não se requerem longos comentários para enfatizar quão aberrantes são as práticas dos neopentecostais, especialmente os da Igreja Universal. A religião torna-se aí um Pronto Socorro ou um Serviço ao homem, tomando caráter antropocêntrico, em lugar do clássico teocentrismo. "Há certos setores, certas igrejas onde se fala mais em Satanás e nos demônios do que em Cristo e em Deus" (p. 133).

Em particular deve-se notar o seguinte:

Os anjos maus (demônios) da Bíblia não devem ser confundidos com as entidades dos cultos afro-brasileiros. Não existem orixás, exus, pomba-gira, preto velho, caboclo... O demônio, porém, existe não como um anti-deus, mas como uma criatura a quem Deus permite tentar o homem para levá-lo ao pecado; as tentações são acompanhadas pela Providência Divina, que dá ao homem a graça de resistir e de assim consolidar a sua fidelidade ao Senhor.

Não se pode crer que todas as desgraças ocorrentes ao homem são provocadas pelo Maligno. O que este quer, é o pecado do homem, única desgraça realmente mortal (que mesmo assim pode encontrar perdão da parte de Deus).

A Igreja Católica pratica o exorcismo após averiguar cuidadosamente o dito caso de possessão diabólica. Desde que haja suspeita fundamentada de possessão, o Bispo local designa um sacerdote que aplica o exorcismo solene, o qual inclui jejum, orações... Tais casos são raros, pois hoje em dia a psicologia das profundidades e a parapsicologia explicam racionalmente muitos fenômenos outrora atribuídos ao demônio.

A alegação de que há demônio na origem de cada desgraça é copiosa fonte de renda para a Igreja Universal. Escreve Ricardo Mariano:

"Os pastores praticamente não têm folga. Estão sempre atarefados com quatro, cinco cultos diários, aconselhamento pastoral, programas de rádio, vigílias e, no final do expediente, com montanhas de cédulas de dinheiro para contar" (p. 61).

"Para ser consagrados, os pastores precisam de ser casados, ter a vocação ministerial comprovada pelo Espírito Santo e, sobretudo, ser bons arrecadadores de dízimos e ofertas, aptidão vista pela liderança como sinal inequívoco de que seu ministério está ‘abençoado’ por Deus" (p. 62).

A pregação da Igreja Universal encontra eco especialmente nas camadas mais pobres e menos cultas da população; trata-se de pessoas pouco afeitas ao senso crítico e muito carentes de atendimento. Escreve Ricardo Mariano:

"Segundo a pesquisa Novo Nascimento, extenso survey realizado pelo ISER no Grande Rio em meados dos anos 90, 63% dos fiéis da Universal ganham menos de dois salários mínimos e 28% entre dois e cinco salários. Ou seja, 91% têm menos de quatro anos de escolaridade e 85% não passaram do primário... Por piores que sejam os indicadores sociais brasileiros, os membros da Universal têm renda e escolaridade bem inferiores às da população. São portanto os muitos pobres e marginalizados que fazem a fortuna da Universal" (p. 59).

O fenômeno neopentecostal assim analisado bem evidencia que o senso religioso desligado do raciocínio ou reduzido à fantasia e à emotividade pode degenerar, servindo de fonte de exploração para quem o saiba espertamente aproveitar. É, pois, indispensável que o fiel cristão procure aprofundar seus conhecimentos religiosos, a fim de não se tornar vítima de pregadores dotados de inflamada dialética, mas portadores de falsa mensagem. A Religião é, por sua etimologia, a re-ligação do homem com Deus; é o culto de adoração e louvor a Deus, que certamente redunda em benefício do fiel. "Conhecer a Deus é viver, e servir a Deus é reinar", diz o Missal Romano.

Fonte: Google
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