quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Matrix cristão - sistema religioso

Com o lançamento do filme Matrix Revolutions, o último da trilogia Matrix dos irmãos Wachowsky, reacendem as discussões sobre o conteúdo filosófico e religioso do filme.

Uma comparação de uma cena do filme, com a saída de Neo do sistema religioso corrupto e humano que tem controlado os cristãos e retirado-os da verdadeira mensagem de Jesus.



O que é Matrix?
Antes de se aprofundar nos simbolismos que permeiam toda a série, é preciso lembrar da resposta para a pergunta essencial do filme: O que é Matrix? No filme, Matrix é um mundo dos sonhos gerado por computador, um gigantesco sistema de realidade virtual que simula o nosso mundo como é hoje e conecta toda a humanidade adormecida, mantida sem consciência de sua própria realidade. Todas as pessoas do planeta (exceto um grupo de rebeldes que habita o subsolo da Terra) foram escravizadas há uma centena de anos, depois de uma sangrenta batalha que foi vencida por máquinas dotadas de inteligência artificial. Os humanos são utilizados como fonte primordial de energia pelas máquinas, impossibilitadas de usarem a energia solar, que não penetra mais na atmosfera.

Cristianismo em Matrix
As analogias de Matrix com as religiões são fáceis. Boa parte das pessoas que viram o filme devem ter notado a presença de elementos cristãos na produção. Na mais óbvia delas, Neo (Keanu Reeves) morre, ressuscita e ascende aos céus. Jesus Cristo? Pode apostar que sim. Neo é O Messias, O escolhido, aquele da qual falam as profecias e cuja vinda é preparada por Morpheus (Lawrence Fishburne), que, por sua vez, cumpre o papel no filme que na Bíblia é de João Batista.
O personagem, cujo nome é o mesmo do deus grego dos sonhos (mais uma simbologia inteligente), aguarda pacientemente a vinda do Messias, que poderá submeter a Matrix às suas próprias regras, reprogramando-a a partir de dentro. Em outras palavras, realizar milagres. A ligação de Neo com a figura do Messias cristão é reforçada no filme deinúmeras maneiras. "Aleluia! Você é meu salvador, cara. Meu Jesus Cristo particular", exclama Chad, um comprador de softwares ilegais de Neo, enquanto ainda era Thomas Anderson, um programador no mundo real. Na nave Nabucodonosor (batizada com o nome de um rei babilônico responsável pela destruição do templo de Jerusalém para colocar o povo de volta no verdadeiro caminho de Deus), a tripulação, maravilhada com os feitos de Neo, exclama com freqüência "Jesus Cristo" ou "Cristo". É no veículo também que está gravada a inscrição "MARK III nº11", referência messiânica do Evangelho de Marcos 3:11, que diz "E quando os espíritos impuros o viam, se jogavam gritando: Tu és o filho de Deus".
Depois de Neo, o nome Trinity (em português, Trindade) - que significa o conceito de Pai/Filho/Espírito Santo - sugere outro elemento cristão. Todavia, tem implicações mais profundas, que derivam do significado convencional da palavra, algo justificado no primeiro diálogo da personagem com o escolhido: "Você é A Trinity? Jesus... é que pensei que fosse um homem", diz surpreso Neo. "A maioria dos homens pensa assim", revela a hacker, sugerindo que a utilização de seu nome não deriva da maior fé em atividade no planeta, na qual a trindade é essencialmente masculina. Mãe, filha e espírito santo?
Merecem destaque ainda o fato da primeira Matrix ter sido concebida como um lugar ideal - um paraíso - que foi rejeitado pelos humanos (a história de Adão e Eva) e os nomes Apoc (abreviação de Apocalipse), Zion (Sião, a Terra Prometida para os judeus) e, o mais interessante, Cypher (interpretado por Joe Pantoliano) - cujos atos refletem a traição de Judas na Bíblia. Cypher, que quer dizer "codificador", também espelha a natureza do personagem: alguém que não pode ser decodificado/entendido.
Gnosticismo
Porém, apesar dos elementos descritos acima serem essencialmente cristãos, a analogia entre o sistema da Matrix e as crenças religiosas pouco se utiliza dessa fé. A fundamentação para o funcionamento da câmara de sonhos parece mais calcada nas filosofias gnóstica e budista, em eterno questionamento da realidade como a vemos.
O gnosticismo foi uma sistema religioso que floresceu entre os séculos II e V e tinha seus próprios rituais e escrituras, sendo a principal delas o Evangelho de Tomás. No mito gnóstico, o Deus Supremo é absolutamente perfeito, reside no paraíso, e abaixo dele estão outros seres divinos - sem gêneros distintos -, que têm o poder de gerar herdeiros, também divinos e perfeitos, quando unidos em par. Todavia, quando um deles - Sophia - decide dar à luz uma entidade sem o auxílio de outra divindade, surge Yaldabaoth - um herdeiro aberrante, imperfeito, que é jogado fora numa região separada do universo. Tal divindade solitária acaba acreditando que é o único Deus existente e decide criar anjos, a Terra e as pessoas. Tal decisão acaba privando os humanos - também criações divinas - de seu reino de direito, o paraíso, mantendo-os presos num mundo material terrível.
As referências ao gnosticismo em Matrix vão além do simples fato de que os humanos são tratados como prisioneiros em um mundo no qual não escolheram viver - e do qual precisam despertar. As próprias inteligências artificiais parecem refletir o deus aberrante criado por Sophia. Os robôs pensam e existem, mas não têm espíritos. Como Yaldabaoth, criam sua própria raça e mundo - a Matrix. É só quando Neo toma consciência da fragilidade desse mundo imperfeito e de sua condição de entidade divina que consegue quebrar as regras e passa a operar milagres, tornando-se o salvador de sua raça. Vale notar também que Thomas Anderson - o nome de batismo de Neo - significa ANDER (homem) + SON (filho), ou seja, filho do Homem; e Thomas ou Tomás é o nome do autor do Evangelho fundamental do gnosticismo.
Alguns autores vão ainda além e atribuem parte da própria criação do efeito bullet time (aquelas seqüências congeladas baseadas nos animês e HQs, nas quais a câmera dá até uma volta 360º ao redor dos objetos em cena) ao gnosticismo. É que nos mitos dos gnósticos, as divindades mais elevadas conseguem tornar-se imóveis e silenciosas, sem qualquer medo, através de concentração e meditação. "Concentre-se, Trinity", pede Morpheus à sua aliada em determinado momento do filme.
Todavia, concentração e imobilidade também são encontradas em outra filosofia religiosa cuja presença é maciça no filme - o budismo.
O Budismo em Matrix
Logo depois de ser proclamado o "Jesus Cristo particular" de seu comprador, Neo lembra-o que aquela transação é ilegal, ao que ele responde: "Isso nunca aconteceu. Você não existe". Trata-se da idéia budista da Vacuidade ou Vazio: a não-realidade do indivíduo e dos fenômenos, prenúncio precoce do que ainda está por vir.
Matrix reflete nas telas o Samsara, o ciclo budista de morte e renascimento no qual a existência é considerada uma ilusão, palco de sofrimento e a frustração engendrados pela ignorância e pelas emoções conflituosas. Através de meditação, os monges budistas têm como objetivo escapar desse ciclo, atingindo a iluminação, o estado além do sofrimento.
Também conhecida como Budeidade - estado que requer generosidade, disciplina, paciência, perseverança, concentração e o conhecimento transcendente - a busca é a meta de Morpheus para Neo. O capitão da Nabucodonosor já está desperto e optou por auxiliar outros a despertarem, ao invés de desfrutar de sua própria iluminação. No jargão budista ele representa um Bodhisattva e vê em Neo (anagrama para "One" - Um, único) algo mais que um semelhante... alguém que é a reencarnação do humano que no passado transcendeu o conhecimento e controlou a Matrix.
A idéia é reforçada em pelo menos três passagens de morte/renascimento. A primeira é a vida de Thomas Anderson. A segunda é o despertar de Neo para a vida real em seu útero mecânico na Matrix. A última é a "morte" de Neo nos dois mundos e seu renascimento como um novo ser, capaz de reprogramar a realidade da Matrix. O sistema de reencarnação também é sugerido na explicação do funcionamento da Matrix. Nela, os humanos mortos são liquefeitos e usados para alimentar os demais... num eterno ciclo de reaproveitamento.
Todavia, um importante ideal budista não é respeitado no filme. Trata-se da doutrina da não-violência, na qual é ensinada que nenhuma vida deve ser prejudicada. Obviamente, um filme de ação não sobreviveria em Hollywood sem tiros, armas e mortes, numa triste constatação que a iluminação ainda está bem longe de ser alcançada por nós.
Reloaded
Todas as informações acima meramente arranham os simbolismos religiosos em Matrix. Há dezenas de outras menções mitológicas/religiosas, algumas simples - como a inscrição "Conhece-te a ti mesmo", do Oráculo de Delfos, na casa da Oráculo - e outras paradoxais - Zion é sugerido como o Paraíso, mas fica nas profundezas ardentes do planeta, onde seria o Inferno. O fato dos humanos terem arruinado o próprio planeta e serem responsáveis diretos pelo caos do futuro também faz pensar...
Em Matrix Reloaded, segundo filme da série, algumas das idéias até dispostas são reforçadas. Neo, por exemplo, experimenta a vida do Messias e tem até mesmo seguidores! Surgem também outras idéias, novas e ainda mais complexas, enquanto outras, que o público parecia finalmente ter entendido, caem por terra de maneira chocante.